Marias, elas estão por toda parte: nas ruas, nos grandes e pequenos negócios, na política, nas escolas e fora delas, nos presídios, nas metrópoles e em cada município esquecido pelos quatro cantos do
país. As Marias são brancas, amarelas, pretas e indígenas. Carregam dores, amores, sonhos,
desigualdade e violência. Elas são mulheres e um prato cheio de múltiplas histórias, números, vidas e personalidades.
No Brasil, segundo dados do Instituto Brasi leiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010,
as Marias somavam 11,6 milhões de pessoas, o equivalente a 6,3% da população brasileira
do período e a 12,3% das mulheres do país. Aproximadamente uma em cada doze brasileiras se chama Maria, o nome mais popular de todos os tempos.
Quanto à distribuição, apesar de 17% delas estarem no estado de São Paulo, a maior taxa de
incidência do nome é no Piauí, onde o número chega a 362 mil em comparação à população total da região, de 3,1 milhões de pessoas.
A arte de ser Maria
Em setembro de 2018, Milton Nascimento
reviveu um grande sucesso de sua autoria e de Fernando Brand, com a gravação do clipe da inesquecível canção “Maria, Maria”. A música, gravada pela primeira vez em 1978, no álbum Clube da Esquina, e que ficou marcada na voz de Elis Regina nos anos 1980, narra uma história de luta, garra e sonho – atributos que geram identificação no povo brasileiro.
A Maria de Milton e Fernando de fato existiu. A música é dedicada a uma senhora que residia próximo a uma linha férrea e criava três filhos sozinha. A luta de Maria era para que suas crianças conseguissem estudar e acreditassem nas possibilidades da vida, apesar das dificuldades. Segundo dados do IBGE de 2015, o número de mães solos no Brasil é de 11,6 milhões. Esse cenário de configuração familiar é tão comum e abundante que, coincidentemente, o número de mães solteiras é similar à quantidade de Marias identificadas no país pelo IBGE.
Filmes, livros, produções teatrais, séries e, principalmente, telenovelas, também fazem uso recorrente do tema. Nas novelas, a Maria normalmente representa uma mulher comum, trabalhadora, de classe baixa, honesta e que vence, um dia após o outro, cada necessidade e obstáculo impostos pela vida – sempre
com uma reviravolta, o clímax da história.
Em 1978, a Rede Globo produziu e transmitiu “Maria, Maria”, a primeira novela escrita por Manoel Carlos para a emissora. O enredo contava a história de Maria Helena, uma moça de família pobre do sertão, e Maria Dosá, mulher elegante e desejada – ambas vividas pela atriz Nívea Maria. O caminho das duas personagens cruza com o do tropeiro Ricardo. Maria Dosá amava Ricardo, que amava Maria Helena. A trama foi exibida no mesmo ano de lançamento da música de nome homônimo de Milton Nascimento e Fernando Brand.
Vida Maria
As Marias retratadas no mundo artístico representam um primeiro estereótipo comum e de identificação. Mas ser mulher, ser Maria, pode ser isso, nada disso ou muito mais do lado de cá, na vida real. No Brasil, as mulheres chegam a mais de 108 milhões (51,7% da população) e formam 52,7% do eleitorado do
país; 49,7% são autodeclaradas pretas ou pardas, e 448 mil são índias que, juntas, falam 274 idiomas indígenas. Os dados são do IBGE e do Tribunal Superior Eleitoral.
Quando o assunto é educação, elas possuem mais formação: 23,5% das mulheres brancas, com 25 anos ou mais, possuem ensino superior, contra 20,7% dos homens. Apesar de representarem a maioria, entre a população preta de mesma faixa etária, apenas 10,4% das mulheres são graduadas – o número cai para 7% entre homens pretos.
Elas estudam mais, mas têm menor remuneração e ocupam menos cargos de liderança. Ainda segundo informações do IBGE, apesar de representarem 52,4% dos brasileiros em idade de trabalho, apenas 45,6% estão empregadas. Entre aqueles que possuem ensino superior completo, as mulheres recebem salários, em média, 45% menores que os dos homens. Dados do relatório International Business Report de 2020, da agência Grant Thornton, apontam que as mulheres ocupam 29% dos cargos de diretoria executiva, globalmente, e 20% das cadeiras de CEO.
A herança patriarcal que a passos curtos e lentos é deixada para trás, reflete no trabalho e em casa. Logo, no ambiente familiar, as mulheres dedicam semanalmente 21,3 horas de suas vidas aos cuidados com a casa, filhos, marido e idosos, enquanto os homens despendem 10,4 horas, em média – menos que a
metade do tempo dedicado por elas.
Apesar de ser considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) uma das melhores medidas de enfrentamento ao problema, segundo um estudo de 2015 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a Lei Maria da Penha reduziu apenas 10% dos casos de feminicídio - quando o assassinato é motivado pela condição de ser mulher - praticados na casa da vítima. A cada duas horas, uma mulher
morre vítima de feminicídio no Brasil e apenas 8% das cidades do país possuem unidades da
Delegacia da Mulher (IBGE).
O levantamento Violência Contra as Mulheres de 2019, do Instituto Datafolha, diz que 27,4% da população feminina sofreu agressões nos 12 meses anteriores ao levantamento. Para 42% dessas mulheres, a violência ocorreu em casa. E 52%do total de vítimas não denunciaram o ocorrido.
O relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública informa que o atendimento da Polícia Militar às mulheres vítimas de violência doméstica cresceu 44% em São Paulo durante o mês de março de 2020, em comparação com o mesmo período do ano passado. O lugar mais seguro para se proteger de uma pandemia, em casa, tornou-se o mais perigoso para uma mulher.
No passado, mulheres lutaram por direitos básicos como estudar, trabalhar, usar calças e votar – ações que agora são naturais, foram frutos de conquistas. Hoje, há Gabrielas, Brunas, Amandas, Sílvias, Alessias,
Annas, Karens e Jéssicas que tentam mudar pensamentos e posturas ultrapassadas, conscientemente ou não. Há Marias por todos os lados. Há mulheres por todos os cantos, vivendo e sofrendo as dores e alegrias de ser Maria, Maria.
A seguir algumas Marias brasileiras e suas histórias de vida, cuidado, posicionamento e transformação:
Maria Marcada
Nascida em 1960, na capital de São Paulo, Maria Cristina é uma mãe e avó dedicada que há nove anos trabalha em uma grande organização de inteligência de mídia, no departamento de recursos humanos. Porém, por trás desta mulher de costumes “comuns” há uma grande história de superação.
Quando tinha cerca de seis anos de idade, ela mudou-se com sua família para o bairro Vila Nova York, na capital de São Paulo. Lá Cris sofreu o grande trauma de sua infância, quando foi abusada sexualmente por seu vizinho de 17 anos, filho de dona Isabel, uma amiga próxima da família. “Uma vizinha muito querida, me dava roupas e sempre pedia para a minha mãe que me deixasse dormir em sua casa para
brincar com sua filha, que também se chamava Maria. Ela chegou até a ser minha madrinha de Crisma”, disse Cristina.
Foi em uma dessas noites, na casa de Isabel, que a fatalidade aconteceu. Maria foi acordada com a mão do adolescente tirando seu pijama. “Por um longo tempo esta cena se repetia. Eu chorava, mas o maldito me ameaçava e me molestava sempre que tinha oportunidade”. O pesadelo só passou quando Cris e sua família se mudaram: “só o vi depois disso no velório de sua mãe. Já estava casado e com duas filhas. Nojento! Nunca mais tinha ouvido falar dele, para mim, era como se tivesse morrido”.
Cris guardou esse segredo por muitos anos. Conseguiu falar sobre o assunto apenas com sua família, quando se tornou mãe e quis instruir os filhos. “Minha mãe até questionou o porquê eu não contei antes. Mas como eu falei, o medo trava a gente”. Inevitavelmente, o episódio a abalou e gerou bloqueios em suas relações interpessoais. Por conta das memórias, Maria casou-se virgem e teve sua primeira relação sexual consentida com seu marido, Marcelo.
Na sua terceira gravidez, Cris precisou pedir ajuda à sua irmã mais nova, Silvana, de 16 anos. A adolescente se mudou para a casa do casal. Mesmo diante da necessidade, Marcelo questionava quando a cunhada iria embora.
Um dia após o parto, já em casa, Cris amamentava o filho quando seu marido foi tomar banho. Logo em seguida, sua irmã também foi para o andar de cima. Cris suspeitou e os flagrou em um momento de intimidade. “Foi uma cena horrível! Ele entrou na minha vida adulto, não conhecia nada sobre aquele homem. Mas ela não, eu a vi nascer, crescer, cuidei dela. Nunca imaginei que ela pudesse fazer aquilo comigo”.
Com o tempo, Cris absorveu suas experiências como lições de vida e superação. Ela perdoou sua
irmã caçula, ao contrário de Marcelo que decidiu ir embora e começar outro casamento. Hoje
ela tem uma boa relação com a nova esposa do pai de seus filhos. “Acho que na vida não existe
o acaso, carregamos histórias tristes e alegres. O bom é saber que existe a chance de viver o próximo capítulo. Eu fui a dona do meu tempo e soube a hora de mudar minha história.”
E finaliza: “É preciso ter sabedoria para poder tirar proveito de todas as situações que passamos para nos tornarmos fortes, seguras e confiantes. Hoje sou uma mulher realizada. Sou grata pela família que tenho, amigos, trabalho e o melhor: “se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi”.
Maria Transformadora
Nascida em Taubaté, interior de São Paulo, Maria Eduarda está na contramão das estatísticas de violência e exploração que permeiam a existência da população de transexuais e travestis. Aos 21 anos de idade, ela é atriz, professora e cursa o último ano da graduação em Sociologia na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Apesar das inúmeras dificuldades atribuídas ao gênero, ela encara sua trajetória como um privilégio circunstancial. “Tenho certeza que me livrei de muitas situações na escola por ter pele branca e pela condição financeira da minha família”.
O privilégio socioeconômico e racial de Madu, entretanto, não a fez passar ilesa pela homofobia e transfobia. Maria passou por duas etapas em sua vida antes de se descobrir travesti: identidade gay e não-binárie (pessoas que não se identificam com a classificação de gênero entre feminino e masculino). Quando criança, um episódio a marcou: “eu estava brincando, encostei em um garoto e ele falou ‘não encosta em mim boiola’, não sabia o que aquilo significava, mas entendi que foi uma agressão. Para
mim, essa é a pior palavra do mundo”.
Em suas redes sociais os episódios de transfobia fazem parte do dia a dia. Maria conta que costumava revidar as agressões verbais e psicológicas, até o dia em que a violência se tornou física. “Eu estava bebendo na rua com uma amiga travesti, quando encontramos uma pessoa menor de idade, LGBT, em situação de rua. Tentamos ajudá-la e fomos impedidas por um mototáxi que atendia pela região. Pedimos para ele não fazer nada, mas acabei acertada por um capacete no rosto. Até hoje, quando o tempo
está frio, sinto um incômodo onde levei a pancada. Depois disso mudei de postura e entendi que violência não é brincadeira”.
Segundo dados publicados pela ONG Transgender Europe (TGEu), pelo menos 868 travestis e homens e mulheres transexuais foram assassinados entre 2008 e 2016 no Brasil. O número coloca o país no topo do ranking de mortes de pessoas trans e travestis e representa mais que o triplo de homicídios registrados pelo segundo colocado, o México, com 256 assassinatos. Sobre a longevidade, a União Nacional LGBT aponta que uma travesti vive em média 35 anos no Brasil, menos que a metade da população geral, cuja expectativa é de 75 anos e meio de vida. E quando o assunto é a subsistência no mundo da prostituição, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) diz que 90% delas se prostitui para sobreviver.
Maria, no entanto, chegou até a universidade. Foi durante a graduação que ela se encontrou enquanto mulher travesti e passou a fazer parte da Casestranha, coletivo de dança e performance composta, majoritariamente, por LGBTs. “Quero trabalhar como arte educadora. Não quero parar de dar aulas
de inglês, nem deixar o teatro de lado. Quero viajar fazendo teatro e quero peças minhas em cartaz. Meu maior sonho é abrir um bar, uma casa de shows. Quero ser professora durante a semana e atriz aos finais de semana. O importante é que a arte seja diária e semanal”.
Maria Carne de Sol
Maria Barbosa tem 84 anos, nasceu no município de Cedro, que possui cerca de 24 mil habitantes. Não frequentou escola e é considerada analfabeta— sabe apenas escrever seu nome. Mas lá, onde Maria deu o ar da graça, isso não é nada incomum. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio
Contínua (PNAD Contínua) de 2018, do IBGE, a região Nordeste ainda concentra a maior taxa de analfabetismo do país.
O início de sua trajetória foi em pleno sertão, com uma infância marcada por falta de comida, saneamento básico, energia elétrica, asfalto, assistência social, entre outros. “Minha vida foi muito difícil. Muitas vezes não tinha o que comer e o arroz, alimento que dá sustento, era só uma vez por semana”, conta Maria.
Outro momento difícil e marcante foi o desaparecimento de sua irmã mais nova. Maria era encarregada de tomar conta dos seus cinco irmãos. Certo dia, a caçula brincava na rua e, por segundos de descuido, desapareceu. Nunca mais foi vista. O momento foi difícil para Maria e toda a família.
No início da adolescência, ao completar 13 anos, Maria conheceu José, por quem se apaixonou. O casal oficializou a união em 1950 e o primeiro bebê veio dez anos depois. Maria teve dez filhos com José. Ela conta que durante as suas gestações não teve assistência médica — os partos eram normais e realizados em casa.
Aos 84 anos, a aposentada Maria Barbosa conta as reviravoltas de sua história de luta, cor e suor no Nordeste, em meio à escassez e falta de itens de necessidades básicas, como água encanada e luz elétrica.
Ela acordava todos os dias às cinco horas da manhã, preparava o café para as crianças pequenas e cuidava da casa. Faltavam, no entanto, alguns itens de primeira necessidade, como água encanada. À noite, Maria se encarregava de colocar as crianças para dormir e assim continuar seus afazeres. Ela
costurava à mão os trajes e as redes em que todos dormiam. Tudo feito com o algodão que José colhia na roça. Essas tarefas se repetiam por todos os dias até a meia-noite, sob a claridade das lamparinas, pela ausência da energia elétrica.
Por volta de 1991, as coisas começaram amelhorar. Nessa época, os filhos passaram a contribuir financeiramente para ajudar os pais. Nessa mesma época, o casal conseguiu se aposentar e foi a partir deste momento que Maria passou a ter fartura na vida, se sentir realizada por ver seus filhos vivendo com
estabilidade e poder dançar forró pé de serra sem preocupações.
Maria atualmente mora na cidade em que nasceu. Ela conta que o lugar está melhor: tem produtos industrializados, o estudo é mais acessível, tem ônibus para levar as crianças para a escola e as ruas são asfaltadas. A energia elétrica e a água encanada também chegaram, assim como os programas de assistência do governo.
Mesmo com todas as mudanças, Maria ressalta: “ainda existem pessoas que passam fome como eu passei e mães que sofrem por ver os filhos em péssimas condições. Isso não é só no nordeste, mas também em outros lugares do mundo”.
Hoje, Maria diz que a união da família foi essencial durante sua trajetória e que olha para trás com muito orgulho de todas as experiências e dificuldades que viveu.
Por: Alison Silva, Beatriz Banov, Cecília Sobreira, Felipe Mina, Juliana Andrade, Laís Teixeira e Mário Matsubara. Ilustrações: Gustavo Viola